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Clarice Lispector - Algo de bom para ler


Alegrias de Joana



A LIBERDADE QUE Às VEZES sentia não vinha de re¬flexões nítidas, mas de um estado como feito de per¬cepções por demais orgânicas para serem formula¬das em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.

O estado para onde deslizava quando murmu¬rava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteú¬do e uma forma, mas sem dimensões também. A im¬pressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facil¬mente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. So¬bretudo dava idéia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fa¬tais como as pancadas do coração. Delas não muda¬ria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em idéia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se po¬dia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente gran¬de que se desgastava, mas eternidade era a sucessão.
Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explicava a forma — era tão alto e puro gritar: o movimento explica a forma! — e na su¬cessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no co¬meço do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percep¬ções — por meio delas Joana fazia existir alguma coisa — ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma.
Havia muitas sensações boas. Subir o monte, parar no cimo e, sem olhar, sentir atrás a extensão conquistada, lá longe a fazenda. O vento fazendo esvoaçar as roupas, os cabelos. Os braços livres, o coração fechando e abrindo selvagemente, mas o rosto claro e sereno sob o sol. E sabendo principal¬mente que a terra embaixo dos pés era tão profunda e tão secreta que não havia a temer a invasão do en¬tendimento dissolvendo seu mistério. Tinha uma qua¬lidade de glória esta sensação.
Certos momentos da música. A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mes¬mo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se reve¬lava. Do pensamento tão íntimo que ouvindo alguém repetir as ligeiras nuances dos sons, Joana se sur¬preendia como se fora invadida e espalhada. Deixa¬va até de sentir a harmonia quando esta se popula¬rizava — então não era mais sua. Ou mesmo quan¬do a escutava várias vezes, o que destruía a seme¬lhança: porque seu pensamento jamais se repetia, enquanto a música podia se renovar igual a si própria — o pensamento só era igual a música se criando. Joana não se identificava profundamente com todos os sons. Só com aqueles puros, onde o que amava não era trágico nem cômico.
Havia muita coisa a ver também. Certos instan¬tes de ver valiam como "flores sobre o túmulo": o que se via passava a existir. No entanto Joana não esperava a visão num milagre nem anunciada pelo anjo Gabriel. Surpreendia-a mesmo no que já en¬xergara, mas subitamente vendo pela primeira vez, subitamente compreendendo que aquilo vivia sem¬pre. Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim, ali estava a coisa verdadeira. Um retrato antigo de alguém que não se conhece e nunca se reconhecerá porque o retrato é antigo ou porque o retratado tornou-se pó — esta sem-intenção mo¬desta provocava nela um momento quieto e bom. Também um mastro sem bandeira, ereto e mudo, fincado num dia de verão — rosto e corpo cegos. Para se ter uma visão, a coisa não precisava ser tris¬te ou alegre ou se manifestar. Bastava existir, de pre¬ferência parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da existência... Mas isso não deveria ser buscado uma vez que tudo o que existia forçosamente existia... É que a visão con¬sistia em surpreender o símbolo das coisas nas pró¬prias coisas.
As descobertas vinham confusas. Mas daí tam¬bém nascia certa graça. Como esclarecer a si pró¬pria, por exemplo, que linhas agudas e compridas tinham claramente a marca? Eram finas e magras. Em dado momento paravam tão linhas, tão no mes¬mo estado como no começo. Interrompidas, sempre interrompidas não porque terminassem, mas porque ninguém podia levá-las a um fim. Os círculos eram mais perfeitos, menos trágicos, e não a tocavam bas¬tante. Círculo era trabalho de homem, acabado antes da morte, e nem Deus completá-lo-ia melhor. En¬quanto linhas retas, finas, soltas — eram como pen¬samentos.
Outras confusões ainda. Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um..., entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha tam¬bém de que não sabia se entrara "tudo é um" ainda em pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma. Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência de "tudo é um". Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa ver¬dade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mas a raiz, pren¬dendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, im¬ponderável, impalpável.
Oh, havia muitos motivos de alegria, alegria sem riso, séria, profunda, fresca. Quando descobria coisas a respeito de si mesma exatamente no mo¬mento em que falava o pensamento correndo para¬lelo à palavra. Um dia cantara a Otávio histórias de Joana-menina do tempo da criada que sabia brincar como ninguém. Brincava de sonhar.
— Está dormindo?
— Muito.
— Então acorde, é de madrugada. . . Sonhou? A princípio sonhava com carneiros, com ir à escola, com gatos tomando leite. Aos poucos sonha¬va com carneiros azuis, com ir a uma escola no meio do mato, com gatos bebendo leite em pires de ouro. E cada vez mais se adensavam os sonhos e adqui¬riam cores difíceis de se diluir em palavras.
— Sonhei que as bolas brancas vinham subin¬do de dentro...
— Que bolas? De dentro de onde?
— Não sei, só que elas vinham...
Depois de ouvi-la, Otávio lhe dissera:
— Agora penso que talvez tivessem abando¬nado você muito cedo... a casa da tia... os estra¬nhos ... depois o internato...
Joana pensara: mas havia o professor. Respon¬dera:
— Não... O que mais poderiam fazer comi¬go? Ter tido uma infância não é o máximo? Nin¬guém conseguiria tirá-la de mim... — e nesse ins¬tante já começara a ouvir-se, curiosa.
— Eu não voltaria um momento à minha me¬ninice, continuara Otávio absorto, certamente pen¬sando no tempo de sua prima Isabel e da doce Lí¬dia. Nem um instante sequer.
— Mas eu também, apressara-se Joana em res¬ponder, nem um segundo. Não tenho saudade, com¬preende? — E nesse momento declarou alto, deva¬gar, deslumbrada. — Não é saudade, porque eu te¬nho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria...
Sim, havia muitas coisas alegres misturadas ao sangue.
E Joana também podia pensar e sentir em vá¬rios caminhos diversos, simultaneamente. Assim, en¬quanto Otávio falara, apesar de ouvi-lo, observara pela janela uma velhinha ao sol, encardida, leve e rápida — um galho trêmulo à brisa. Um galho seco onde havia tanta feminilidade, pensara Joana, que a pobre poderia ter um filho se a vida não tivesse secado no seu corpo. Depois, mesmo enquanto Joa¬na respondia a Otávio, lembrava-se do verso que o pai fizera especialmente para ela brincar, num dos que-é-que-eu-faço:

Margarida a Violeta conhecia,
uma era cega, uma bem louca vivia,
a cega sabia o que a doida dizia
e terminou vendo o que ninguém mais via...

como uma roda rodando, rodando, agitando o ar e criando brisa.
Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo sofrimento se desenrolava também se existia — como um rio aparte.
E também se podia esperar o instante que vi¬nha... que vinha... e de súbito se precipitava em presente e de repente se dissolvia... e outro que vinha... que vinha...


Fonte: claricelispector.blogspot.com

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