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Interdal: Arnaldo Jabor

Não se sabe mais o que é filme bom ou ruim


Arnaldo Jabor

As pessoas me falam muito: "Escreve sobre cinema..." Pois bem - vamos a isto. Outro dia, recebi o DVD de um filme de Quentin Tarantino que não tinha visto na penultima Mostra de Cinema de S.Paulo: "Death Proof" (não sei o nome em portugues; talvez, "À Prova de Morte"). O filme é sobre dois grupos de mulheres lindas e sensuais, perseguidas por um "stuntman" chamado Mike que usa seus carros "à prova de acidente" para executar as ditas mulheres.


Mais uma vez fiquei chapado. Não tinha gostado do "Kill Bill 1", se bem que o "KB 2" é muito legal. E fiquei pensando que Tarantino trabalha no fio da navalha entre o realismo bruto e a comedia paródica. Sem duvida, vez por outra ele escorrega para a grossura, principalmente quando produz os filmes de um mediocre imitador como Roberto Rodriguez. Mas, quando acerta, é das coisas mais estimulantes das telas de hoje. Tarantino é um furo no cinema "main stream" e conseguiu a proeza de ser um grande sucesso comercial, apesar de suas raizes experimentais. Assim como o cinema de autor dos anos 60 foi fetichizado por Hollywood, Tarantino fetichizou o cinema comercial e fez dele um fato novo.


Com a aceleração do mundo global e bruto, surgiu o que se chama, na teoria da informação, de "loudness" (volume do sinal) . A cultura do espetaculo exige que esse nivel suba sempre, para não decair o impacto da novidade. O mercado demanda mais e mais "loudness". Hollywood teve de dar comida para esta fome, fazendo o grande simulacro do simulacro. Tambem, a "loucura do mundo" virou tema das grandes produções. Coisas como "Matrix", "Sin City" ou "Clube da Luta", saudados como "novidades" artisticas por criticos sem referencias, fizeram a mímica ridícula de um cinema transgressivo, anarquico, disfarçando a narrativa linear e obediente. Os filmes viraram video-games ao contrário, que programam o jogador.


Fotografia extraordinária, montagem frenética e sincopada, contraluzes infernais, "computer graphics" delirantes, tudo é bom, só que os filmes são umas drogas. A "novidade" aparece para deixar tudo exatamente como sempre foi.


Não se sabe mais o que é bom ou ruim. Muita critica é vista até com desconfiança, como se fosse coisa "de elite", pelo populismo eletronico. Que saudades de Andre Bazin, de Truffaut, de Pauline Kael, Paulo Emilio, Moniz Vianna, Ely Azeredo...


Que terrivel a ausencia de Fellini, Bergman, Antonioni, Welles.


Mas, não foi só o cinema que mudou é impressionante como os espectadores mudaram nesses anos todos. Estamos domesticados por convenções de linguagem, de ritmos, pelo amor a uma superficialidade que se acha "profunda", justamente por ser "efêmera", "volatil", como quer a "contemporaneidade". O espectador de hoje não pensa; ele é pensado pelo filme.


Daí a importância de Tarantino , Jarmusch, algum Hal Hartley, David Lynch. Eles rompem com o segredo mais bem-guardado do cinema americano: o realismo burguês. Cabe perguntar: por que, nos filmes de Tarantino, aquele agregado de bobagens, de dialogos vazios , a narrativa sem rota, as reações absurdas de personagens são tão reveladores?


E´que atraves desses detritos , Tarantino se defronta com o drama atual do cinema e da arte : retratar o quê? Com que fim? Para o bem? Para a moral, para a politica? Como fazer um cinema bondoso num mundo mau? Como construir algo com esperança num beco sem saida? Ao contrario dos curadores da Bienal, ele não morre no vazio.


Tarantino enfrenta a crise transformando as personagens em "coisas". Acaba com a psicologia e parte para a absoluta assunção da superficialidade, que soa como a saudade de algo profundo. Inconscientemente, ele viu o deserto moral de hoje e sacou que esse confronto tem de ser ao nivel da "forma", pois não há mais linguagem "analógica" para retratar este universo "digital". A vida em Tarantino é ilogica, fragmentada, uma comedia violenta, sem principio nem fim previsiveis. Para Tarantino não há mundo real; real para ele são as imagens de sua cabeça de cinéfilo. O cinema comercial de Hollywood transforma a vida humana em clichés ridiculos. Tarantino só usa os cliches para falar da vida humana. Ele mostra que somos todos clichés. No entanto, atenção, ele não faz isso para "demonstrar " nada. Ao ser absolutamente desumano, cinico e violento, ele expõe nossa ausencia de compaixao. Tarantino desconstroi a violencia. Ao adotar o deboche e o cinismo diante de qualquer sentimento, ele nos faz saudosos de alguma humanidade perdida. Ao usar uma linguagem solta e louca, ele nos lembra que o cinema podia ser inventivo e livre da mediocridade. Ao não dizer nada, ele diz tudo.


A grande influência de Tarantino é Jean-Luc Godard. Isso.


Outro dia revi um filme do mestre: "Alphaville". Meu Deus, como o tempo passou... Hoje, diante da tecno-ciencia, o filme ficou ingenuo, ilegivel para os jovens espectadores. Os ensinamentos de liberdade que Godard nos trouxe, como um Picasso do cinema, ficaram esquecidos e se transformaram em "chatura", em "complicação".


Hoje, diante das imagens incessantes, a influencia de Godard restou apenas no videoclipe e no filme de publicidade. Ambos


souberam se alimentar obtusamente deste código descontinuo , viraram-no numa curiosidade "psicodélica" e tiraram o que de mais profundo havia em Godard: a recusa do óbvio naturalismo. Assim, transformaram-no no "pai" de uma falsa liberdade.


Tarantino conseguiu, em alguns filmes, poluir a limpeza do "mainstream" com a dúvida da linguagem herdada de Godard. Sua empresa de produção se chama "Bande à Part", uma homenagem a um filme de Jean-Luc. Não há ideais, finalidades, não há a idéia de "outra realidade" por trás das paródias de Tarantino.


Só há o prazer de rir da superficialidade da violência, o que resulta na exposição do problema maior da sociedade americana: a violência da superficialidade.

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