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Água e Lágrima

Água limpa, água lava, água leva. Água seca, destrói, falta, mas também mostra os sentidos mais verdadeiros e de solidariedade, quando vai e vem.

Repara só como esta semana você vai ouvir muito falar em água. É. Água. Ela tem dia, Dia Internacional e tudo (dia 22). Imagino que é uma data pensada pra fazer a gente pensar também, lembrar dela, de onde ela está, quanto resta. Quanto vai e volta. Onde secou, ou o que cobriu. Mais ainda, para que nunca falte. Senão, secaremos todos.

Mas, por uma coincidência, o que me lembrou da água foram lágrimas. E o que é mais inquietante é que foram lágrimas não vertidas, não derramadas. Lágrimas que não caíram dos olhos de meu pai, que ganhou um bolo de aniversário de 91 anos de vida há poucos dias. Elas estavam ali naqueles olhos, eu vi! Foi como se escoassem "para dentro”, engolidas, aspiradas, represadas. Para mim, mais uma vez a questão que ficou: Por que os homens não choram mais? O que temem?


Penso se temem perder o controle, tornarem-se tão frágeis a ponto de serem conquistados e dominados, sob pés insensatos e aproveitadores. Talvez temam ser destruídos. Mas choram, sim, em silêncio. Ou sozinhos. Ou "para dentro”, como vi meu pai fazer tão cristalinamente. Guardar lágrimas não deve fazer bem para a saúde.


Naquele momento, para ele de extrema alegria, mesmo para um bugre velho, eu pude reconhecer: ele lembrou de tudo, dos mandos e desmandos de sua vida, dos amores, de minha mãe, já levada daqui, e com quem ele conviveu 55 anos. Pensava no que fez e no que deixou de fazer. Nas vitórias, muito rápidas, e nas derrotas, sempre mais marcantes. Tudo desfilou à sua frente naqueles segundos enquanto cantávamos "Parabéns para você nesta data querida...” Disfarçando, de um sopro só ele reuniu forças e "matou” as velas e o exagerado maçarico de fogo que havíamos espetado para dar mais um visual no bolo. Ele não queria levantar os olhos e nos fitar, olhos marejados. As gotas não caíram, equilibristas.


Papai sempre viveu uma vida dura, com tudo o que se possa imaginar de adversidades. Mas de tudo o que com ele aprendi, há algo nunca conseguiu me passar: a rudeza. A falta, ou melhor, a contenção, das lágrimas que raramente vi. Toda uma enorme dificuldade de afeto, de toque. Acho que sou ao contrário dele.


As mulheres são daqui; homens são dali. Marte ou Vênus, como dizem. Só o que sei é que ambos têm lágrimas e podem se enternecer com pequeninas coisas. A cena daquele filme. A lambida agradecida do cachorro, ou mesmo o canto de reconhecimento do pássaro. Talvez o façam, se debulhem, quando sós. E índios? Choram? Preciso pesquisar mais.


De minha colheita de sentimentos (colheitadesentimentos@gmail.com), colhi lágrimas de grandes homens, em palavras. Eu tinha razão: do jeito que as coisas andam está todo mundo muito sensível, disfarçando, fazendo-se de durões, mas prontos a desabar de seus pedestais a qualquer momento. Esse é um risco; por isso temos assistido a tantas cenas horríveis como as descritas, antes, em uma ficção no cinema: "Um Dia de Fúria”.


Vamos abrir nossos bracinhos para nos acolhermos, a nós mesmos, entre nós. Talvez as coisas possam se tornar melhores e menos violentas.

Li relatos de mães preocupadas até com o que fizeram de si próprias, e pais preocupados com o que os filhos estão fazendo (ou não) de suas vidas. Conseguiram chorar em palavras, nos seus relatos, nas suas saudades, nas frustrações. As mulheres, em sua maioria, relatam glórias e vitórias após amplas adversidades. Ou ainda, suas raivas, águas represadas, como águas prestes a estourar pontes, diques, o que vier pela frente, quando explodirem. As mulheres gostam de parecer mais fortes. Os homens, por sua vez, estão querendo, loucos, mostrar suas fraquezas e dependências. Essa é a modernidade.


Nosso dia-a-dia reflete em tudo as águas que vertemos. Todas. O lado egoísta dos que a usam para varrer calçadas, como se vassoura pudesse ser. O esforço dos que a carregam, latas d’água na cabeça, morro acima, morro abaixo, ou entre cactos e calangos. A insanidade daqueles que as poluem, nossos rios e nascentes.


Somos como plantas, mas nossos banhos agora precisam ser mais rápidos, antes que um Grande Irmão venha nos controlar. Não podemos mais divagar com torneiras abertas nem enquanto escovamos os dentes, nem usar o barulho da aguinha caindo da torneira para dar vontade de fazer xixi. Politicamente incorreto virou. Desperdício! Mas nessas coisas coletivas, a liberdade vai estar sempre meio que comprometida, e temos de ir nos acostumando.


Tudo bem, a água que vem de fora está controlada. Liberemos, então, as nossas, limpas, nossas águas internas! As lágrimas... Ou ainda o suor. O suor do trabalho. O suor do suar numa noite de amor e sexo, nada mais belo e natural. Ali não há fingimento possível. Nas lágrimas ainda pode haver falseamento, lágrimas de crocodilo, de descascar cebolas ou do cristal usado por atores.

Mas não vamos deixar faltar água. Feche a torneira. Mas não os seus olhos.


Marli Gonçalves, jornalista. Chora até vendo propaganda. Mas não tanto quanto deveria quando vê o mundo secar, inclusive de emoções.
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