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Perto do Coração selvagem

...Um Dia...

Um dia o amigo do pai veio de longe e abraçou-se com ele. Na hora do jantar, Joana viu estupefata e contrita uma galinha nua e amarela sobre a mesa. O pai e o homem bebiam vinho e o homem dizia de quando em quando:
— Nem posso acreditar que tu tenhas arranjado uma filha...
O pai voltava-se rindo para Joana e dizia:
— Comprei na esquina...
O pai estava alegre e também ficava sério, amassando bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de vinho. O homem virava-se para Joana e dizia:
— Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai respondia:
— Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem era Alfredo.
— Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais em idade de brincar com o que o porco faz...
Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão.
— Qual a sensação de ter uma guria?, o homem mastigava.
O pai enxugava a boca com o guardanapo, inclinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo:
— Às vezes a de ter um ovo quente na mão. Às vezes, nenhuma: perda total de memória... Uma vez ou outra a de ter uma guria minha, minha mesmo.
— Guria, guria, muria, leria, seria..., cantava o homem voltado para Joana. Que é que tu vais ser quando cresceres e fores moça e tudo?
— Quanto ao tudo ela não tem a menor idéia meu caro, declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus projetos. Me disse que quando crescer vai ser herói...
O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segurou o queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia mastigar:
— Não vai chorar pelo segredo revelado, não é, guria?
Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham acontecido antes dela nascer. Às vezes mesmo não eram sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que estivesse chovendo porque seria muito mais fácil dormir sem medo do escuro. Os dois homens buscavam os chapéus para sair; então, ela se levantou e puxou o paletó do pai:
— Fica mais...
Os dois homens se entreolharam e houve um instante em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas quando o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir chuva, sem ouvir gente, pensando no resto da casa negra, vazia e calada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acordasse, iria espiar o quintal do vizinho, ver as galinhas porque ela hoje comera galinha assada.
— Eu não podia esquecê-la, dizia o pai. Não que vivesse a pensar nela. Uma vez ou outra um pensamento, como um lembrete para pensar mais tarde. Mais tarde vinha e eu não chegava a refletir seriamente. Era só aquela fisgada ligeira, sem dor, um ah! não esboçado, um instante de meditação vaga e esquecimento depois. Chamava-se... — olhou para Joana — chamava-se Elza. Me lembro que até lhe disse: Elza é um nome como um saco vazio. Era fina, enviesada — sabe como, não é? —, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse. Não, ela não se entregava nunca. E mesmo aquela cor seca — felizmente a guria não puxou —, aquela cor não combinava com uma camisola... Ela passaria a noite a rezar, a olhar para o céu escuro, a velar por alguém. Eu tinha má memória, nem me lembrava por que a chamara de bruta. Mas não tão má que a esquecesse. Via-a ainda caminhando sobre um areai, os passos duros, o rosto fechado e longínquo. O mais curioso, Alfredo, é que não poderia ter existido nenhum areai. No entanto a visão era teimosa e resistia às explicações.
O homem fumava, quase deitado na cadeira. Joana riscava com a unha o couro vermelho da velha poltrona.
— Uma vez eu acordei com febre, de madrugada. Parece até que ainda sinto a língua dentro da boca, quente, seca, áspera como um trapo. Você sabe meu pavor de sofrer, prefiro vender minha alma. Pois pensei nela. Incrível. Já completara trinta e dois anos, se não me engano. Conhecera-a aos vinte, fugazmente. E num momento de angústia, dentre tantos amigos — e mesmo você, que eu não sabia por onde andava — nesse momento pensava nela. Era o diabo...
O amigo ria:
— É o diabo sim...
— Tu não imaginas sequer: nunca vi alguém ter tanta raiva das pessoas, mas raiva sincera e desprezo também. E ser ao mesmo tempo tão boa... secamente boa. Ou estou errado? Eu é que não gostava daquele tipo de bondade: como se risse da gente. Mas me acostumei. Ela não precisava de mim. Nem eu dela, é verdade. Mas vivíamos juntos. O que eu ainda agora queria saber, dava tudo para saber, é o que ela tanto pensava. Você, como me vê e como me conhece, me acharia o tipo mais simplório perto dela. Imagine então a impressão causada na minha pobre e escassa família: foi como se eu tivesse trazido para o seu rosado e farto seio — lembras-te, Alfredo? — os dois riram — foi como se eu tivesse trazido o micróbio da varíola, um herege, nem sei o quê... Sei lá, eu mesmo prefiro que esse broto aí não a repita. E nem a mim, por Deus... Felizmente tenho a impressão de que Joana vai seguir seu próprio caminho...
— E então?, disse o homem em seguida.
— Então... nada. Ela morreu assim que pôde. Depois o homem disse:
— Espia, tua filha quase dorme... Faz um ato de bondade: bota-a na cama.
Mas ela não dormia. É que entrefechando os olhos, deixando a cabeça cair de lado, valia um pouco como se estivesse chovendo, tudo se misturava levemente. Assim quando ela deitasse e puxasse o lençol estaria mais acostumada com dormir e não sentiria o escuro pesando sobre o seu peito. Hoje então que ela estava com medo de Elza. Mas não se pode ter medo da mãe. A mãe era como um pai. Enquanto o pai a carregava pelo corredor para o quarto, encostou a cabeça nele, sentiu o cheiro forte que vinha dos seus braços. Dizia sem falar: não, não, não... Para animar-se pensou: amanhã, amanhã bem cedo ver as galinhas vivas.
O fim de sol tremia lá fora nos galhos verdes. Os pombos ciscavam a terra solta. De quando em quando vinham até a sala de aula a brisa e o silêncio do pátio de recreio. Então tudo ficava mais leve, a voz da professora flutuava como uma bandeira branca.
— E daí em diante ele e toda a família dele foram felizes. — Pausa — as árvores mexeram no quintal, era um dia de verão. — Escrevam em resumo essa história para a próxima aula.
Ainda mergulhadas no conto as crianças moviam-se lentamente, os olhos leves, as bocas satisfeitas.
— O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana,
— Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
— Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
— Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
— Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
— Ser feliz é para se conseguir o quê?
A professora enrubesceu — nunca se sabia dizer por que ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.
O servente veio chamar a menina para o gabinete. A professora lá se achava:
— Sente-se... Brincou muito?
— Um pouco...
— Que é que você vai ser quando for grande?
— Não sei.
— Bem. Olhe, eu tive também uma idéia — corou.
— Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você for grande leia-a de novo. — Olhou-a. — Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo... — Perdeu o ar sério, corou. — Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
— Não.
— Não o quê? — perguntou surpresa a professora.
— Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.
A professora ficou novamente rosada:
— Bem, vá brincar.
Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:
— Você não achou esquisito... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?
— Não, disse. Voltou para o pátio.



Fonte/Autor:Clarice Lispector

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