Acordo. Estou sentado na apertada poltrona da classe econômica. O avião já começou o procedimento de aterrissagem no aeroporto de Lisboa. Hoje é dia 25 de outubro de 2004. São 10h da manhã. O comandante comunica que o voo estava atrasado cerca de uma hora. Lá se vai a minha conexão direta com o voo para Amsterdã, com saída prevista para as 9h30m. Começo a ficar preocupado. Há um paraglaider turbinado na minha bagagem. Ela já não será transferida diretamente de um avião para outro, sem passar pela alfândega de Portugal. Da janela, dá pra ver o dia: cinzento, úmido, frio. Um dia típico do inverno europeu. Vou ter que pegar minha bagagem. As mudanças de plano aumentam minha preocupação. Pergunto à comissária de bordo o que teria que fazer, já que havia perdido a conexão direta para meu destino final. Ela dá uma resposta de secretária eletrônica:
– Você deve retirar sua bagagem na esteira do terminal, ir ao guichê da companhia aérea para despachar a mala e aguardar por quatro horas pelo próximo voo para Amsterdã.
Passo pela imigração sem maiores problemas. Mas sinto que tem algo errado. As coisas não estão fluindo normalmente. Percebo uma movimentação estranha de agentes alfandegários em torno da esteira rolante. De longe, avisto minha bagagem, rodando ao lado das muitas outras malas que haviam sido descarregadas. Sou assaltado por dúvidas e incertezas. Sinto um terrível frio na barriga. Estou com medo. Aparentemente, não há escapatória. Aproximo-me da esteira e fico ao lado de outros passageiros. Deixo minha bagagem passar três vezes. Olho à minha volta.
Os agentes alfandegários continuam
É um daqueles momentos decisivos da vida.
Largo tudo e me mando... ou arrisco...
Respiro fundo. Finjo que não sei qual é minha bagagem. Inutilmente,
tento demonstrar que estou lendo as pequenas etiquetas
coladas às malas que passam. Que absurdo!
Não sei onde arranjei coragem, mas o fato é que, heroicamente,
me preparo para pegar a mala.
Mal coloco as mãos em minha bagagem, surgem dois homens.
Eles se identificam: dois agentes policiais. Educadamente, um
deles pede que os siga. Lá vou eu com o coração batendo a milhão,
as mãos suando, a cabeça pegando fogo. Ainda assim, tento
disfarçar, demonstrar naturalidade, como se tudo estivesse normal.
Vamos para uma pequena sala. Dou de cara com um senhor
meio careca, com um uniforme de calças azuis e camisa social
branca. Deve ter por volta de 60 anos. Uma grande mesa junto à
parede me chama a atenção. Os dois agentes da polícia colocam
minha bagagem em cima dela.
O senhor careca veste suas luvas cirúrgicas. Levanta as duas
mãos à altura do rosto, como fazem os cirurgiões na mesa de
operação, e me pergunta:
– Posso revistar sua bagagem?
Parece bastante seguro e experiente. Começo a sentir um
turbilhão de emoções. Mas continuo mantendo a calma. Pelo menos
é o que eu imagino. Autorizo a revista. Ele abre a mala.
– Que equipamento é este?
– É um paraglaider, um equipamento composto de uma vela e
uma cadeira com cerca de 1 metro de altura.
Tento descontrair. Digo que sou praticante daquela modalidade
de esporte, muito comum nas praias brasileiras. Mas o velhinho
continuava sério, impassível no seu trabalho, e não dava a
mínima às minhas palavras.
Ele abre a vela, esticando-a no chão. Até aí, tudo normal.
Logo ele me pergunta se poderia abrir a cadeira do paraglaider.
Digo que se trata de um equipamento muito caro, que não me
responsabilizaria pelas consequências de qualquer tipo de dano
irreparável que ocorresse.
susfistaO velhinho abre um sorriso sarcástico.
– Não se preocupe, a alfândega portuguesa se responsabiliza
por qualquer dano que venha a ser provocado no seu pre-ci-o-so
equipamento.
Quando dou por mim, ele já está com uma faca cortando a
base da cadeira e arranca uma fina e transparente camada de
poliuretano. O agente alfandegário, com aquele pedaço de plástico
na mão, me pergunta:
– O que é isto?
Respondo que era apenas um plástico, que ele estava destruindo
meu equipamento, que ele estava passando dos limites.
Mais uma vez, eu tentava me convencer de que ainda não
estava totalmente perdido. Logo abaixo dessa camada, havia uma
câmara de pneu de caminhão. A câmara isola um pouco do cheiro
da droga, para despistar os cães farejadores da polícia.
Mais uma pergunta a respeito daquela camada de borracha.
Continuo tentando disfarçar, manter uma calma que, eu sentia,
estava chegando ao fim.
– Essa borracha serve para amortecer o impacto nas aterrissagens.
Recebo como resposta outro sorriso sarcástico, dessa vez,
acompanhado de um menear de cabeça para os lados, como se
ele estivesse pensando: que bobagem menino...
Devo ter arregalado os olhos quando vi na sua mão uma pequena
faca. Com ela, o velhinho corta a camada de borracha e me
pergunta, com calma, porém incisivo:
– E agora, menino, o que é isto?
Meus olhos devem ter ficado maiores do que meu rosto. Mesmo
assim, num imenso esforço, reúno toda a calma que ainda era
possível naquele momento e respondo, pausadamente:
– Isso é cocaína.
No mesmo instante, um dos agentes que me trouxeram surge
à minha frente com um par de algemas. Sou algemado e o “simpático”
velhinho me conduz para outra salinha.
Aquele clique da algema iria reaparecer muitas vezes na minha
cabeça. Na hora, não percebi. Agora, lembrando, como já
lembrei tantas vezes, aquele clique, fechando uma insólita e constrangedora
situação, dividiu minha vida.
Na salinha, a primeira coisa que vejo é uma maldita placa:
TRÁFICO INTERNACIONAL EM PORTUGAL
É PASSÍVEL DE PENA DE ATÉ 25 ANOS DE PRISÃO
Antes que o velhinho saísse, ainda tive tempo e coragem para
perguntar:
– Quanto tempo de cadeia me espera?
– Brazuca... traficante... flagrante... Você pega, no mínimo,
20 anos.
Baixou em mim a maior solidão do mundo.
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